Realidade x Verdade

Um significado bem aceito para “verdade” é “a propriedade de estar conforme aos fatos ou à realidade”. Tão íntima é a relação que não poucas vezes confundimos, misturamos ou utilizamos os conceitos como sinônimos.

Talvez, em algum momento, verdade e realidade tenham sido uma coisa só, indistinguíveis. Enquanto os seres vivos desenvolviam os estágios iniciais da senciência, a capacidade de perceber conscientemente o que lhes acontece e ao seu redor, a realidade lhes era imediata. As impressões eram efêmeras, não guardando registros para comparações ou referências posteriores, quanto menos para compartilhar com outros indivíduos. Não havia pensamento ou discurso, portanto, apenas a realidade em si.

Aos poucos a capacidade de reter informação sobre a realidade para uso próprio no futuro, desenvolvida paripassu com capacidade de obtê-la e comunicá-la a seus semelhantes, dá origem ao conceito de verdade.

A informação retida, apesar de muito útil, nem sempre reflete a informação atualizada. Por exemplo, é bastante útil a um animal lembrar-se de onde encontrara água, para poder repetir o ato de matar sua sede. Um dia porém, este conhecimento revelar-se-á desatualizado. Associar aquele local à satisfação de uma necessidade básica não mais corresponderá à realidade. A distância temporal, que só existe de fato para seres com alguma capacidade de retenção de informações na memória, parece ser a primeira instância de distanciamento entre realidade e verdade.

Se a realidade muda, mas essa mudança não é percebida, temos apenas uma série de realidades distintas percebidas cada qual em seus próprios termos. Mas quando a realidade muda e essa mudança é percebida, surge a possibilidade de comparação entre os termos de duas ou mais realidades distintas, e o que era válido em um momento, em outro não é mais.

Neste ponto, a não-adequação do pensamento à realidade apenas denota a capacidade de compreensão do fenômeno da mudança pelo indivíduo.

Mas outro aspecto começa a ganhar importância, à medida em que os indivíduos desenvolvem a capacidade de comunicar a experiência que conseguem reter da realidade a outros da sua espécie.

A verdade passa a não estar mais nas coisas, nos fatos, eventos e seres da realidade objetiva em si mesmos, mas sim numa correspondência estabelecida, por meio de um discurso ou pensamento, entre a subjetividade cognitiva do intelecto animal e aquele mundo real, posteriormente transmitida em processos intersubjetivos.

Há um primeiro aspecto, referente ao conhecimento, à interação entre a subjetividade cognitiva do intelecto e o mundo real, permeada por várias camadas ou interfaces que atuam como filtros, como lentes, como véus, matizando, distorcendo, escondendo, prejudicando ou até impossibilitando a reconciliação entre a verdade e a realidade na mente do observador.

Entre o mundo real e o pensamento alinham-se os sentidos, por meio dos quais a mente pensante é abastecida de informações sobre o mundo exterior.

Percebam que tenho evitado adjetivar os processos de observação, conhecimento e pensamento como humanos. É preciso destacar que essas capacidades não foram dadas a espécie humana do jeito que se apresentam agora, vieram sim evoluindo junto com a evolução biológica de todo conjunto de espécies. É racional, portanto, supor que cada ser vivo as detenha em algum grau.

A maior diferenciação entre a espécie humana e as demais evidencia-se nesse momento, ao depararmo-nos com a sofisticação da comunicação entre os indivíduos. O desenvolvimento da linguagem é infinitamente superior na espécie humana, ainda que nem assim exclusiva dela.

A elaboração do discurso sobre a realidade defronta-se com a própria limitação linguística. É necessário criar todo um vocabulário e uma sintaxe para traduzir o mundo real, captado pelos sentidos e processado pela razão, de modo a permitir a comunicação das impressões individuais. Uma série de impropriedades configura-se inevitável…

As imagens que vimos com nossos olhos imperfeitos, a partir ir de nossa posição com ângulo de visão restrito, tratamos agora de deitar a telas de dimensões e formatos restritos, com tintas improvisadas e talento nem sempre comprovado.

Afora esta situação já desfavorável, de início, outras irão surgindo inevitavelmente, expondo os limites de nossos sentidos, intelecto, razoabilidade… e a falta de limites de nossas intenções…

Como encarar o desafio de reconciliar discurso e pensamento à realidade?

Como reconhecer e entender as dificuldades neste caminho de volta?

Como entender o discurso quando ele se afasta da verdade?