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Democracia: vítima ou cura para o coronavírus?

Para fazer frente à crise pandêmica, seria fundamental dispor de informações de qualidade e incontestáveis ​​sobre a doença: sua etiologia, sua patogênese, seus padrões de disseminação e contágio, seus sintomas, seus tratamentos e suas consequências e sequelas.

Como sabemos, ainda não dispomos dessas informações e essa falta de conhecimento é o que espalha o impacto da Covid19 dos quartos, enfermarias e corredores dos hospitais para nossas casas, escritórios, fábricas, áreas públicas e meios de transporte.

Esse impacto tremendo e abrangente afeta todos os níveis, desde o círculo individual e familiar até os construtores da agenda política e econômica internacional.

São muitos os agentes envolvidos, com diferentes entendimentos da situação, interesses e motivações; as discussões vão desde a origem do próprio vírus até a emergência de uma ordem global totalmente diferente.

Nem um único pensamento sobre essas questões é consensualmente acordado. Em vez disso, quase todos eles caíram no grande caldeirão fervente da opinião pública, aquecido pela paixão de um fogo alimentado pela falta de informação e atiçado por interesses econômicos e políticos.

Nesse cenário de turbulência, os processos de tomada de decisão são clara e inevitavelmente comprometidos. De diretrizes e estratégias globais e nacionais de saúde pública e economia às atividades cotidianas das pessoas comuns.

Desde o início, os governos centrais deveriam ter assumido o papel de liderança na disseminação de informações, fornecendo-as de forma clara, tecnicamente fundamentada, cuidadosa, inequívoca, uniforme e , sobretudo, de forma politicamente isenta.

Para isso, porém, teria sido necessário dialogar, ouvir e levar em conta pontos de vista divergentes ao longo do processo. Quanto menos espaço para a troca de ideias civilizada e democrática, mais temas vão se polarizar e se politizar, o que só é bom para quem quer aproveitar o momento para fazer manobras políticas e eleitorais.

A democracia me parece a única forma de contornar a falta de informação que está prejudicando nossas decisões. Pessoas com ideias diferentes deveriam não confrontar-se, mas admitir que nenhum dos lados possui as informações necessárias para tomar melhores decisões para a maioria da população, sem deixar de atender aos interesses das minorias.

Careca de não saber

O cara era até cabeludo, mas perdeu uma aposta e teve que raspar a cabeça, na gilete.

Impressionado com a popularidade súbita e dono de uma personalidade um tanto obsessiva, passou a raspar a cabeça todo dia.

Ao cabo de alguns anos, decidiu que era hora de deixar os cabelos crescerem novamente e parou de raspar a cabeça.

Não lhe cresceu um fio sequer. No decorrer daqueles anos, sem perceber, tivera um problema de “queda de cabelo” que o deixou definitivamente careca.

O Brasil já apresentava sinais de calvície, quer dizer desemprego, bem antes do advento da pandemia, mas cresceram a níveis que só não são descritos como alarmantes porque se justificam pelo alarme na área da saúde e porque julgam-se temporários

Durante a pandemia, porém, temos visto a iniciativa de várias agentes econômicos que tentam adaptar sua atividade com o uso de tecnologias pré-existentes ou aperfeiçoamento de processos, que diminuem ou eliminam a necessidade de alguns de seus colaboradores, dispensados neste período de isolamento social.

Por outro lado não tenho visto nenhuma iniciativa de grande porte, seja por parte da iniciativa privada seja capitaneada pelo setor público.

Em que pesem as dificuldades inerentes à crise do coronavírus, muita coisa poderia (deveria) estar sendo feita. Por exemplo:

  • criação e disseminação de conteúdo profissionalizante ministrável à distância
  • abertura de discussões com os representantes de cada setor da atividade econômica acerca das políticas públicas que estariam sendo gestadas, para ser implementadas assim que as condições sanitárias permitirem, de forma a alinhar o planejamento das ações e seu cronograma de implantação
  • reposicionamento da diplomacia comercial face à necessidade de proteção dos postos de trabalho e do mercado interno
  • elaboração, discussão e compartilhamento amplos de análises de cenários para os vários setores da economia
  • definição imediata de um pacote de grandes obras, que possam vir a ser atrativas para grandes investidores e competir pelo capital transnacional
  • coletar, avaliar, orientar e replicar iniciativas de enfrentamento pós-crise no seio da sociedade
  • dar destaque e visibilidade o que estiver sendo feito para garantir futuros postos de trabalho

As muitas e louváveis iniciativas provenientes da sociedade civil dirigem-se a mitigar os efeitos da queda do nível de emprego, pouco impacto tendo na geração de novos postos de trabalho.

As esferas do poder público parece não estarem coordenadas e o que quer que estejam fazendo não tem sido amplamente discutido e compartilhado com a sociedade. Pode estar havendo falha na comunicação institucional, bem como na cobertura da imprensa.

Se estamos achando que os postos de trabalho vão renascer após a pandemia, temos algo que aprender com o careca.

Ética de pandemias: ser pago para não trabalhar

Muitas das noções associadas ao comportamento ético ou virtuoso tem origem na forma como os indivíduos encaram e desempenham as atividades necessárias à sobrevivência.

Isto é fácil de entender se compreendermos que a sobrevivência do indivíduo é obtida pari passu com a sobrevivência do grupo de que faz parte.

É considerado virtuoso aquele cujas atitudes contribuem para o bem-estar coletivo, em última análise, aquele capaz de sacrificar parte de seus esforços, e do resultado obtido a partir destes esforços, pela sobrevivência de outros da espécie.

Tais atitudes são rotuladas de altruístas, ao passo que são consideradas egoístas aquelas em que o indivíduo ignora a necessidade de seus semelhantes, tratando apenas das suas próprias ou, no máximo, das do seu grupo familiar restrito.

Esse padrão ocorre em todas as espécies vivas, como parte central do mecanismo da evolução. O sucesso evolutivo reflete, entre outros fatores, a harmonia conseguida entre as atitudes que visam a sobrevivência do indivíduo e as que favorecem a sobrevivência do grupo.

Nos seres humanos, isso era mais visível quando mais primitivos, quando a maior parte das atividades restringia-se à luta para manter-se vivo e sequer havia o conceito de trabalho.

Os seres humanos primitivos obtinham o necessário à sobrevivência diretamente do mundo natural, numa imagem que, não fora a escassez, em muito assemelhar-se-ia à descrição do Jardim do Éden da tradição bíblica.

Neste contexto, abrir mão de parte dos recursos obtidos, compartilhando-os com os semelhantes, bem como participar ativa e comprometidamente das atividades coletivas levadas a cabo para obtê-los, são os comportamentos sociais a partir dos quais se forjaram conceitos como moral, ética e virtude.

Em algum momento, surge o conceito de trabalho, aplicado a uma parcela das atividades humanas. Por motivo de concisão, não divagarei sobre isso neste momento.*

Apenas vislumbremos a evolução da espécie humana como a diversificação de suas atividades. Embora cada vez menos imediatamente identificáveis com a busca pura e simples de recursos para a sobrevivência, a maioria das atividades humanas visa sim, em última instância, garantí-la.

E o fato é que na atual conjuntura, várias áreas da atividade humana estão sofrendo restrições impostas no interesse do bem da coletividade.

Expressas em leis, emanadas do poder público em plena vigência do Estado democrático de direito, estas restrições atingem liberdades individuais, entre as quais o direito ao livre exercício profissional e impactam desigualmente as atividades, com base na sua essencialidade e nos níveis de risco potencial de contaminação delas decorrentes.

Parece justo que a coletividade, que se busca proteger com tais medidas, se organize para garantir alguma renda e, consequentemente, a sobrevivência das pessoas cujas atividades estão sendo proibidas.

Para encerrar por ora, importante salientar que nem toda medida deve ser de iniciativa dos entes governamentais e que, mesmo quando assim seja, não se trata de benesse distribuída por critério da autoridade, mas sim de expressão da solidariedade social, insculpida no ordenamento jurídico, que não apenas autoriza, mas determina a atuação estatal.


  • Alguma reflexão acerca do conceito de trabalho me ocorreu e pretendo desenvolvê-la: tipos de trabalho, essencialidade, valoração e valorização. Possivelmente trará cores para o assunto deste post.